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Biografia

Biografia
                  

Miguel Torga  
[S. Martinho de Anta/Vila Real, 1907 - Coimbra, 1995]  

Miguel Torga
Miguel Torga é o nome literário do médico Adolfo Rocha. Poeta, ensaísta, dramaturgo, romancista e contista.

Cultivou a escrita autobiográfica num extenso Diário (escrito entre 1932 e 1994) e nos seis Dias de A Criação do Mundo (publicados em 1937, 1938, 1939, 1974 e 1981), obra que o autor viria a definir como «crónica, romance, memorial e testamento». Nela narra-se a luta do menino orgulhoso contra a pobreza de um Trás-os-Montes rural que o quer escravizado, a recusa em ser criado de burgueses (Porto, 1917) e a rápida desistência de candidato a seminarista (Lamego, 1918), aspiração logo abandonada por quem já na altura manifestava relutância por qualquer género de gregarismo.

A fase crucial da sua puberdade, com a descoberta da humilhação pessoal e do instinto sexual, decorre no Brasil (1920-1925), a capinar, laçar cavalos e apanhar café na Fazenda de Santa Cruz, Minas Gerais, propriedade de um tio paterno.

Completou o Liceu em Coimbra, em apenas três épocas, e graças às mesadas que o tio ia enviando do Brasil, compensação pelo duro trabalho já realizado para ele, completou o curso de Medicina nesta cidade (1928-1933), com vinte e seis anos. Aparecem também descritos nesta obra os seus primeiros contactos com o mundo literário, nomeadamente representado pelo grupo coimbrão da revista Presença (1927-1940), de cujo grupo fundador fez parte e que se traduziram na aparição do seu primeiro livro poético, Ansiedade (1928) – expurgado, como boa parte da sua poesia da juventude, na Antologia de 1981 –, e na afirmação de uma personalidade humana marcada por um «individualismo feroz» que o levaria à polémica dissidência na revista, provocando também a cisão do grupo fundador, e à criação da revista Sinal em 1930, ano da publicação de Rampa, o seu segundo poemário.

O Diário inicia-se em 1932 precisamente com uma nota da sua passagem pela Universidade («Passo por esta Universidade como cão por vinha vindimada. Nem eu reparo nela nem ela repara em mim»), indício do desprezo por uma instituição elitista envelhecida e politicamente servil. É nesta altura que lança novos livros poéticos (Tributo, 1931 e Abismo, 1932), época marcada, aliás, pela sua participação em movimentos sediciosos e pelo relacionamento com intelectuais de notória filiação antiditatorial. Em 1934, após breves períodos de exercício da medicina em S. Martinho de Anta e em Vila Nova de Miranda do Corvo (Coimbra), Adolfo Rocha irá perfilhar o pseudónimo Miguel Torga (A Terceira Voz), identificando-se com aquele arbusto espontâneo, resistente e florido em chão agreste e com uma tradição combativa e heterodoxa espanhola (Miguel de Molinos, Miguel de Cervantes, Miguel de Unamuno).

A Guerra Civil de Espanha (1936-1939) – cujos avatares e desenlace foram seguidos neste lado da fronteira com angustiada aflição pelos intelectuais partidários da República – constituiu sem dúvida um abalo afectivo e um reactivo para a revolta e a definitiva conformação do ideário democrático do poeta, assim como um motivo inspirador de boa parte dos seus Poemas Ibéricos (1952, 1965), essa lição de amor peninsular, e do conto «Requiem» (Pedras Lavradas, 1951), da mesma maneira que a subsequente repressão exercida pelo regime de Franco seria denunciada nas páginas de intervenção cívica de Fogo Preso (escritas entre 1945 e 1976 e publicadas nesta última data por óbvios motivos de censura), e a indeterminação submissa de parte do povo peninsular no relato «O Covarde» (Pedras Lavradas).

Entretanto, a sua actividade literária não decresceu: a colectânea poética O Outro Livro de Job e a fundação da revista Manifesto são anteriores à primeira viagem à Europa, em 1937. É durante este percurso que constatará a degradação da Espanha em guerra, esmagada já sob um regime de terror que glorifica Franco em retratos e dísticos estampados nos muros das cidades.

De novo em Portugal, cursa em 1938, com trinta e um anos, a especialidade de otorrinolaringologia, com Ferreira da Costa. Estabelecido em Leiria, publica a denúncia dos horrores presenciados na Europa das Ditaduras em O Quarto Dia. O volume é logo apreendido (1939) e o autor detido pela PIDE, sob uma vaga acusação de comunismo que incluía a suspeita de recepção de dinheiro de Moscovo para a compra de instrumental cirúrgico. Transferido para o Limoeiro e para o Aljube de Lisboa e libertado, sem julgamento, poucos meses depois, publicou o célebre Bichos (1940), livro que integra contos parcelarmente concebidos na cadeia.

Os magistrais Contos da Montanha – que o autor deu a lume um ano antes da saída das narrativas que conformam Rua (1942) –, interpretados pelos órgãos de repressão cultural como denúncia local das penosas condições de vida do nordeste, foram igualmente apreendidos em Coimbra – o médico tinha aberto o consultório que viria a ser centro de conspiração contra o regime no Largo da Portagem – por ordem do censor Salvação Barreto. O escritor iludiu a proibição enviando um maço de provas tipográficas para o Rio de Janeiro, de modo que o livro regressou ao país e circulou clandestinamente até 1969. O poema dramático Sinfonia (1947) – publicado após os dramas naturalistas Terra Firme e Mar (1941) e a parábola dramática O Paraíso (1949) – sofreu idêntica punição.

A esposa, a lusista belga Andrée Crabbé Rocha, com quem casara civilmente em 1940, foi expulsa, devido às suas atitudes democráticas, da Faculdade de Letras de Lisboa, onde era assistente, em Junho de 1947. O médico, por sua vez, era demitido, sem qualquer justificação, do Serviço de Saúde da Casa dos Pescadores da Figueira da Foz.

As dificuldades financeiras, contudo, não vergaram a exemplar combatividade do autor: entre 1943 e 1950 publicou várias colectâneas poéticas (Lamentação, 1943; Libertação, 1944; Odes, 1946; Nihil Sibi, 1948). Estamos perante a época da mais fecunda criação: nela editaram-se os romances O Senhor Ventura (relato das aventuras de um emigrante português na China, 1943) e Vindima (denúncia da exploração do vindimador no Douro, 1945), a sua obra prima, Novos Contos da Montanha (1944), a peça O Paraíso e o livro de ensaios Portugal (1950), em paralelo com a publicação dos sucessivos volumes do Diário.

Em 1950 foi levantada ao escritor a proibição de saída do país, reiniciando assim as suas viagens a Espanha e a outros países da Europa, coroadas pelo regresso ao Brasil da sua meninice em 1954 (data da aparição da colectânea poética Penas do Purgatório), um ano antes do nascimento de Clara, a sua única filha, e da publicação de Traço de União, volume ensaístico sobre as relações culturais luso-brasileiras. Na altura desta deslocação como convidado ao Congresso de Escritores de São Paulo, a sua obra gozava já do reconhecimento internacional patenteado nas traduções em castelhano, francês, inglês, romeno...

O ano de 1950 marca também a publicação de Cântico do Homem, o poemário de maior empenhamento social do autor e uma das referências culturais do povo português, que começava a ver em Torga um símbolo cívico de oposição ao salazarismo. Oito anos mais tarde foi publicado o livro considerado cimeiro da poética torguiana: Orfeu Rebelde.

Em 1960 foi proposto pela Universidade de Montpellier para Nobel da Literatura. Novamente candidato ao Nobel em 1978, foi objecto nesta data de uma homenagem nacional, comemoração do cinquentenário da sua estreia nas letras.

A escrita do Diário seria continuada até poucos meses antes da sua morte. Nele, e juntamente com a expressão do processo de auto-conhecimento pautado pela constatação da contingência humana e a obsidiante sombra da morte, insere-se a crónica político-social da intra-história da nação e a análise do papel de Portugal na Europa contemporânea. A fase histórica mais notavelmente referenciada é a relativa ao Portugal submerso durante o regime do Estado Novo, com o qual Torga manteve o seu teimoso e continuado braço de ferro como franco-atirador espiritual em prol dos direitos humanos, e à revelação dos seus nefastos efeitos de asfixia e alienação no povo.

Encontram-se referências à participação do escritor em comícios de apoio à candidatura pessoal de Humberto Delgado (Coimbra, Maio, 1968); à assinatura de manifestos colectivos de protesto que caíram indefectivelmente nas mãos da PIDE (Coimbra, Novembro, 1965); à reacção de sereno alívio perante a morte do tirano – cuja tipologia psicológica é interpretada com implacável acerto – e à nomeação de Américo Tomás como Presidente da República (Setembro, 1968); à constatação das contradições internas do regime, manifestas numa guerra colonial «fantasma» ao mesmo tempo que não hesita em convocar caricatas eleições legislativas (Outubro, 1969); à consciência do perigoso nacionalismo insurgente verificado nas suas visitas a Angola e Moçambique em 1968; à desconfiança que lhe inspira a Revolução do 25 de Abril mercê do seu antimilitarismo; à inquietação pela perda das marcas da lusitanidade em Macau e Goa, verificada na sua viagem de 1987; à satisfação evidenciada na data da dissolução do Conselho da Revolução, cuja presença tutelar se manteve até Outubro de 1982.

Nas suas páginas, o escritor, encarnação do velho anarquista, manifesta a sua oposição franca a qualquer instituição que prive o indivíduo da liberdade. É esta atitude que explica a sua indignação perante os falhanços socio-económicos dos sucessivos governos do após 25 de Abril ou a crítica à inconsciência e à corrupção instaladas na classe política, a sua firme oposição à precipitada adesão à Comunidade Europeia, emoldurada pelos lúcidos avisos premonitórios da irresponsabilidade oficial na assinatura do tratado de Maastricht – verdadeiro atentado contra a independência da nação e o último combate que enfrentou a sua rebeldia. Em paralelo manifesta-se o ensaísmo literário e o artista que, cumprindo o preceito socrático, empreende um caminho de autognose expressado em prosa e versos.

Depois de 1981, em que lhe é atribuído o «Prémio Montaigne» da Fundação Alemã F.V.S., recebe o «Camões» (1989, na primeira convocatória), o «Vida Literária» da A.P.E. (também na sua primeira convocatória, 1992). Nesta mesma data é designado Personalidade do Ano 1991 pela Associação de Imprensa Estrangeira em Portugal e é-lhe outorgado o «Prémio de Literatura Écureuil», do Salão do Livro de Bordéus.

A partir de 1986, em que foi detectada uma doença incurável num corpo já combalido e foi submetido a mais outra intervenção cirúrgica, passou períodos internado no Hospital da Universidade e no I.P.O. de Coimbra, onde acabaria por entregar, impoluto, o seu «branco penacho de poeta» numa manhã invernal, a de 17 de Janeiro de 1995, com 87 anos. Foi nestes locais que redigiu, em parte, o vol. XVI do Diário, corajoso livro viril de adeus e exaltação do acto de viver, pautado por uma ironia sadia e sempre iluminado pela esperança no Homem, valores que levaram a Associação Internacional de Críticos Literários a laureá-lo em 1994.

O seu multitudinário funeral – de Coimbra ao cemitério da sua terra natal – foi clara expressão da dor do povo, enquanto a imprensa nacional e estrangeira, consciente da importância histórica da perda, divulgou a notícia da morte, acompanhada de depoimentos e comentários bibliográficos.

A publicação do Cântico em Honra de Miguel Torga, em 1996, supõe a continuidade da admiração, agora expressa por 85 poetas contemporâneos portugueses. Está traduzido em alemão, castelhano, chinês, francês, inglês, japonês, norueguês, polaco, romeno, servo-croata e sueco.
in Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. IV, Lisboa, 1997