José Rodrigues Miguéis
[Lisboa, 1901 - Nova Iorque, 1980]
Licenciado em Direito, em 1924, pela Universidade de Lisboa e, em 1933, em Ciências Pedagógicas pela Universidade de Bruxelas, José Rodrigues Miguéis exerceu em Portugal, nos anos 20 e 30, intensa actividade jornalística e pedagógica, colaborando designadamente em República, Alma Nova, Seara Nova, Revista de Portugal, entre outras publicações periódicas, e dirigiu com Bento de Jesus Caraça o jornal Globo, apreendido pela Censura em 1932. Apesar de aluno brilhante e dos seus reconhecidos dotes oratórios, não o atraiu a carreira forense.
A sua obra é fortemente marcada pelas preocupações de ordem ética e pedagógica que estavam associadas à formação académica, pelos ideais republicanos de influência paterna, pelo próprio envolvimento na luta política de combate à ditadura – ao lado de José Gomes Ferreira, Irene Lisboa, Jaime Cortesão, Raúl Proença, Câmara Reys, António Sérgio e outros intelectuais do chamado Grupo da Seara Nova – e por uma diversificada experiência de exílio a que se viu obrigado depois de ter sido impedido de leccionar em Portugal.
Sendo inequívoca a sua simpatia pelo ideário e pelos princípios comunistas, é contudo controversa a hipótese da sua filiação no Partido Comunista (cf. Mário Neves, José Rodrigues Miguéis: Vida e Obra, p. 84, Lisboa, 1990).
Emigrou para os Estados Unidos da América em 1935, aí trabalhando como redactor-associado das Selecções do Reader's Digest e como tradutor. A Bélgica, o Brasil e os Estados Unidos são assim, para além de Lisboa, os cenários da obra do que é considerado por António José Saraiva e Óscar Lopes como o nosso mais importante ficcionista do realismo ético (cf. História da Literatura Portuguesa). O que significa com certeza o cruzamento de tendências literárias da época com o testemunho pessoal, uma sensibilidade e um estilo inconfundíveis na apreensão da realidade de que aquelas tendências se faziam eco.
Dostoievsky e Raúl Brandão – ou Dostoievsky por via de Raúl Brandão – são referências quase evidentes e por isso mesmo recorrentemente invocadas pelos que o estudam. E são-no justamente pelo pendor analítico, psicológico da sua abordagem do universo literário e das personagens que o povoam e por essa boa capacidade mimética e simultaneamente transfiguradora no modo de os integrar humana e socialmente. Não chegando a ser caricaturas – porque quase nunca o seu tom é o do sarcasmo, antes o de uma mansa, subtil ironia a aplacar os excessos e os conflitos humanos –, dir-se-ia que é de tão profundamente vividos, de tão claros na sua humanidade que os personagens de Miguéis se tornam literários. Para o que concorrem ainda a notação realista dos ambientes e costumes que os moldam e o rigor quase positivista da história individual que só até certo ponto os determina. Só até certo ponto porque, se é certo que a sua novela de estreia, Páscoa Feliz, se mantém «na linha de sequência do realismo de oitocentos» – como observa Óscar Lopes no que será um dos estudos mais argutos sobre a obra de Miguéis, «O Pessoal e o Social na Obra de Miguéis», in Cinco Personalidades Literárias, Porto, 1961 –, a verdade também é que essa espécie de suporte estrutural do conjunto da sua obra não se desenvolve já numa lógica puramente mecanicista, mas antes se articula com o problema da responsabilidade individual e com a «intuição de um livre-arbítrio humano», à maneira de Dostoievsky (Óscar Lopes, ibidem).
Atravessa-a por outro lado o que se poderia chamar uma outra intuição, a de uma apesar de tudo transcendência dos comportamentos humanos – ao que não será estranho o enredo de mistério de muitas das suas narrativas. «Por este acabamento» da estrutura narrativa e ainda por «um bom sentido do ritmo recontador» (idem, ibidem) se demarca a obra de José Rodrigues Miguéis no quadro da nossa ficção contemporânea: denunciando sem dúvida o seu tempo histórico e artístico, entre o pendor subjectivista das teorizações literárias e artísticas da Presença e o empenho social do movimento neo-realista, mas sem consentir qualquer forma de encaixe num ou noutro. Porque tudo isto se passa em Miguéis de um modo mais sensível e implícito do que explícito, capaz de traduzir «num olhar ou num grito tudo o que ainda hoje não cabe em mais nada» (cf. Óscar Lopes, op. cit., a propósito da narrativa autobiográfica Um Homem Sorri à Morte com Meia Cara).
in Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. IV, Lisboa, 1997