António Boto
[Casal de Concavada/Abrantes, 1897 - Rio de Janeiro (Brasil), 1959]
Literariamente, assinou sempre António Botto (ou Boto, só com um t, na fase derradeira).
Poeta e contista. Na infância residiu em Alfama, cujo ambiente virá a projectar em alguns dos seus poemas, no decadentismo amoroso da novela dramática António, ou no populismo da peça em 3 actos Alfama. Na juventude, começou por ser empregado numa livraria de Lisboa, fez várias viagens ao estrangeiro e, numa instabilidade que parece ter sido determinada essencialmente pela sua própria personalidade, foi, entre 1924 e 1925, funcionário público em Angola, voltando depois a Lisboa para trabalhar, primeiro, no posto antropométrico do Governo Civil e, depois, noutros sucessivos e efémeros empregos. Expulso, em 1942, do funcionalismo público, em 1947 partiu, já muito doente, para o Brasil, onde viria a morrer atropelado.
A obra de A. Botto encontra-se intimamente associada ao modernismo português: com o que aqui se quer significar tanto o acolhimento que encontrou nos seus mentores e nas principais revistas de vanguarda da época – casos da Athena, da Águia, da Presença e sobretudo, da Contemporânea – como a sua inserção nas rupturas estéticas que o movimento modernista representa na evolução da nossa história literária. Testemunhos de tal interesse são os vários textos de reflexão e polémica que as suas Canções motivaram em Fernando Pessoa (cf: «António Botto e o ideal estético em Portugal», in Contemporânea, 1922), em Raul Leal (Sodoma Divinizada, 1923), em Mário Saa («António Botto – o espiritualista da matéria – Em desagravo do insulto que o Poeta sofreu quando da apreensão brutal do seu livro Canções», apêndice à edição de 1924 das Curiosidades Estéticas de A. Botto), em Casais Monteiro, Afonso Duarte, Gaspar Simões, Teixeira-Gomes (autor do «Posfácio» às Canções, 1930), José Régio.
Mas se de algum modo o que no caso de A. Botto suscitou interesse e polémica (exaltados, os defensores de conceitos estéticos e morais mais conservadores terão contribuído para a apreensão da 2ª. ed. das Canções, em 1923) foi o escândalo de uma homossexualidade transparentemente confessada nos seus versos, não é evidentemente aí que reside o seu modernismo literário ou a modernidade da sua mundividência. Como aponta Jorge de Sena (in Líricas Portuguesas, 3ª. s. 2ª. ed., 1972), «nem sempre Botto soube, na sua fusão do popular e do "refinado", manejar a autocrítica suficiente a evitar superficialidades, convencionalismos literários [...], ou algum mau gosto eventual [...]. Mas conseguiu transformar o versilibrismo pós-simbolista [...] em microdramas de uma subtileza psicológica e emocional por vezes admirável, brevíssimos monólogos dramáticos, densos da amarga teatralidade dos encontros e das separações eróticas, em que os versos desarticulados ou as pausas e os intervalos estróficos adquirem uma poderosa capacidade expressional. Estes desenvolvimentos, como o coloquialismo conversado ou segredado, ou a extrema contensão retórica dos versos transcendiam por completo a tradição literária de que provinham».
Num longo ensaio – António Botto e o Amor, 1938 –, José Régio resume assim, por seu turno, os processos específicos da atitude estética do autor: «Chamei intelectualismo e criticismo de António Botto à intervenção das suas faculdades de observação, análise e juízo nas cousas da sua sensibilidade. Chamei psicologismo à sua faculdade de conhecer ou imaginar a vida interior própria ou alheia. Chamei dramatismo à sua tendência a opor entre si sentimentos, instintos e atitudes, desencadeando conflitos ou propondo problemas cuja solução deixa em suspenso. Chamei narcisismo ao seu interesse e gosto por si próprio, contra e sobre outros amores. Chamei esteticismo ao seu anseio da beleza [...]. Aventurei que da coexistência, no poeta, do fundo lírico e temperamento amoroso com essas inclinações pouco favoráveis ao puro lirismo e ao cego amor vidente – resultaria a sua posição trágica perante o amor.[...]»
Deste modo, se a consciência dramática das contradições amorosas é antiga, a modernidade de António Botto estaria não tanto no seu lirismo confessional, nem sequer naquela consciência, quanto no frontal confronto com ela, na sua racionalização e na sua expressão desencantada e crua, residindo todos os conflitos e todas as tensões na contemplação plástica do corpo: entre a inocência e a amargura, entre o moralismo e a moralidade, nessa contemplação o próprio tempo ganha a dimensão perversa do «sonho que anda a ficar em saudade» («Não queiras saber quem ele é», in Ciúme). Uma «valorização ética do belo formal» (cf. J. Régio, op. cit.) surge como a única resolução possível para uma atitude emocional que, sendo a de um persistente naturalismo, é também sistematicamente dilacerada pelo seu próprio cepticismo. E, como nota ainda J. Régio, é aí que a ironia surge em António Botto às vezes como uma espécie de último recurso, «a fazer o trágico suportar os seus conflitos»: porque «tão forte é o instinto vital, que a vida se contenta muitas vezes com aparências».
in Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. III, Lisboa, 1994