Vieira de Almeida
[Castelo Branco, 1888 - Cascais, 1962]
Esta personalidade singular e carismática do nosso acanhado meio intelectual foi, de algum modo, uma encarnação viva de pulsões aparentemente contraditórias: pensador profundo e subtil, que introduziu, entre nós, a frieza aguda da lógica matemática, ele foi também poeta, ficcionista e ensaísta literário; firme e corajoso opositor de uma tirania frequentemente brutal e atropeladora, ele oferecia ao mundo exterior o perfil subtilmente irónico e tolerante de um ser sumamente refinado e civilizado; mestre inconfundível e, por vezes, irresistivelmente sedutor, o autor dos Parodoxos Sociológicos não deixou discípulos, que se saiba.
Tendo feito estudos liceais em Coimbra e tendo-se licenciado na Faculdade de Letras de Lisboa, começou a sua vida profissional como professor do Liceu de Pedro Nunes, na capital, tendo entrado como docente naquela Faculdade em 1915 e nela tendo chegado a professor catedrático de Filosofia, cargo em que permaneceu até ao ano da sua reforma, em 1958. «Sucessivas gerações de estudantes», observou Rogério Fernandes, «receberam as suas lições. Não, decerto, aulas, no sentido clássico do termo, mas lições em que a implacável e permanente indagação de uma inteligência em acto não conhecia fronteiras temáticas nem culturais. Filosofia, história, literatura, cinema, as mais inesperadas facetas da vida quotidiana, tudo podia ser ponto de apoio da reflexão crítica, que o sal cintilante da ironia ou o fervor rubro da indignação humanizavam para nosso deslumbramento.»
Conversador e orador brilhante e não raro provocante, sedutor por via da palavra, do sorriso, e de uma natural elegância de espírito e de comportamento, Vieira de Almeida permaneceu, por outro lado, fora (mas não alheio) das direcções que mais normalmente captaram as atenções dos sucessivos directores das «modas» filosóficas. Isso mesmo observou Joel Serrão: «Completa e deliberadamente alheio ao hegelianismo, ao materialismo dialéctico, ao bergsonismo, à filosofia dos valores, à fenomenologia de Husserl (1859-1938), ao existencialismo de Heidegger (1889-1976) e seus continuadores e epígonos, o esforço especulativo de Vieira de Almeida, de escopo gnosiológico, epistemológico e lógico, situou-se aquém (ou além?) das mutações culturais operadas pelas sucessivas filosofias que, no seu tempo, ocuparam, umas após outras, o palco da moda, por natureza, mutável e perecível.»
A sua obra de ficcionista e poeta – que mereceu o aplauso de críticos e historiadores da literatura como Hernâni Cidade – confirma no Prof. Vieira de Almeida a dimensão moral do filósofo e pensador, ao mesmo tempo que expressa uma fina intuição do valor musical das palavras e uma atenta, subtil sensibilidade de fundo simbolista e contornos sinestésicos, na densa e no entanto ritmica composição da frase ou do verso.
Notáveis ficariam ainda, para além dos seus ensaios literários, muitas vezes sob a forma de conferências depois editadas em publicações periódicas e em grande parte reunidas nas Opuscula Critica, e que vão de Camões, Pirandello e Montaigne a Antero, Garret e Eça, entre outros, a tradução integral de Dichterliebe, de Heine, sob o título Amores do Poeta (1938), da História da Filosofia Ocidental (1966) de Bertrand Russell (trad. concluída por Rogério Fernandes) e, directamente do grego, da Oração da Coroai de Demóstenes. Carmina Aliena (1961) reúne diversas traduções de textos poéticos, incluindo a versão francesa de parte da obra lírica de Camões.
in Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. III, Lisboa, 1994