José Cardoso Pires
[S. João do Peso, Castelo Branco, 1925 - Lisboa, 1998]
José Augusto Neves Cardoso Pires nasceu a 2 de outubro de 1925, na Aldeia do Peso, no distrito de Castelo Branco. Com poucos meses de idade vem viver para Lisboa, onde fixa residência. Após concluído o liceu, frequenta o curso de Matemáticas Superiores da Faculdade de Ciências, que abandona para se alistar na Marinha Mercante como praticante de piloto sem curso. Viaja então por toda a costa de África, até ser forçado ao abandono dessa atividade.
Desde esse momento, a sua atividade profissional centrou-se em torno da literatura e do jornalismo cultural, tendo sido diretor literário de várias editoras, diretor da revista Almanaque (cuja redação era constituída por Luís de Sttau Monteiro, Alexandre O'Neill, Vasco Pulido Valente, Augusto Abelaira e o escultor José Cutileiro e que contava com a direção gráfica de Sebastião Rodrigues), diretor-adjunto do jornal Diário de Lisboa (1974), redator da Gazeta Musical e de Todas as Artes e crítico literário da revista Afinidades.
Estreou-se com Os Caminheiros e Outros Contos (1949) e Histórias de Amor (1952> Num diálogo com vários autores europeus, com os quais vai dialogando regularmente, como é o caso de Elio Vittorini (Eunice Cabral, José Cardoso Pires, Centro Virtual Camões, pág. eletrónica), Cardoso Pires publica nos finais dos anos 50 e 60 O Anjo Ancorado (1958), Cartilha do Marialva ou das Negações Libertinas (1960), Jogos de Azar (1963), O Hóspede de Job (1963) e O Delfim (1968). O Anjo Ancorado “dá conta dessa realidade modernizada, inscrita na sociedade portuguesa, mesmo no tempo de um regime opressor, mas é vivida apenas por um burguesia muito restrita numericamente, letrada, com intenções políticas democráticas mas inerte, amorfa e envergonhadamente privilegiada em contraste com a maioria da população, que sobrevive numa pobreza no limite da sobrevivência mais primária.”. (Eunice Cabral, José Cardoso Pires, Centro Virtual Camões, pág. eletrónica) O Hóspede de Job, “romance que representa também esta divisão nítida, já surgida no romance anterior, narra a história de uma deambulação de um Job que alberga involuntariamente em sua casa o hóspede que o irá mutilar, reduzindo-o a um pedinte de feira.”. (Eunice Cabral, José Cardoso Pires, Centro Virtual Camões, pág. eletrónica), Cartilha do Marialva ou das Negações Libertinas “é um ensaio sobre a via errada, seguida por Portugal, que optou pelo irracionalismo e pelo imobilismo, atualizados e enaltecidos pelo regime salazarista. A figura do marialva, privilegiado em nome da sua família e dos seus haveres patrimoniais, encarna a espécie de provincianismo português que o autor caracteriza em traços negros e caricaturais de modo a fustigá-lo para melhor o erradicar do país.”. (Eunice Cabral, José Cardoso Pires, Centro Virtual Camões, pág. eletrónica) Jogos de Azar “é uma recolha de entre os primeiros contos (publicados nos dois primeiros livros), escolhidos pelo autor sob a égide da figura do «desocupado», sinónimo, na gramática do autor, do cidadão português, destituído de meios para viver.”. (Eunice Cabral, José Cardoso Pires, Centro Virtual Camões, pág. eletrónica) No romance O Delfim, geralmente considerado a sua obra-prima, “o autor aprimora a narrativa focalizada a partir de um olhar “forasteiro”, aparentemente descomprometido com uma realidade percebida como anacrónica. A Gafeira, aldeia inexistente, inventada a partir de tantas outras portuguesas, é o local de eleição e objeto de um determinado modo de ver e de interpretar o Portugal marcelista, a seis anos de uma mudança drástica. O centro do relato diz respeito a um crime, que consubstancia o estilhaçar de um mundo que se apresenta como perfeito e imóvel, mas que começa a ser infiltrado do exterior por mudanças modernas que o irão alterar para sempre. Esta tensão é narrada por um discurso perspetivístico, distanciado, sendo, então, impossível o registo narrativo de tipo realista. Mesmo sendo um romance profundamente experimentalista, em articulação com as vanguardas europeias desta década, mantém, na sua urdidura, a noção de “documento humano” pela necessidade de traçar, com um rigor irónico, paródico, por vezes “hiper-realista”, as coordenadas portuguesas num período de profundas mudanças. Tendo sido recebido até 1974 como romance neorrealista, tem despertado um interesse crescente como narrativa pós-modernista. Pode efetivamente ser lido como o primeiro romance português no qual confluem as principais linguagens estéticas norteadoras do futuro pós-modernismo português devido à mistura de géneros, à polifonia, à fragmentação narrativa e à metaficção.” (Eunice Cabral, José Cardoso Pires, Centro Virtual Camões, pág. eletrónica)
A partir de 1974, Cardoso Pires dedicou-se exclusivamente à escrita literária, reservando as colaborações jornalísticas a algumas séries de crónicas, posteriormente reunidas em livro (A Cavalo no Diabo 1994), e a projetos especiais, como a reportagem sobre o Vietname – «Apocalipse 2» – publicada nas revistas Triunfo, de Madrid, e Hoy, do México.
No final da década de 60, vai para Londres, onde exercerá funções de leitor no departamento luso-brasileiro do King's College (1969-71). Aí regressará mais tarde, como «resident writer» a convite da Universidade de Londres, entre 1979 e 1980.
Autor vário, do romance à sátira política, passando pelo teatro e pela crónica, José Cardoso Pires é considerado um dos maiores e melhores prosadores e contadores de histórias da literatura portuguesa contemporânea, tendo obras traduzidas numa quinzena de línguas. Nunca tendo integrado qualquer corrente literária específica – considerava-se a si próprio um «integrado marginal» –, acusa, no entanto, influências várias, desde o neo-realismo, no início da carreira, ao surrealismo, passando por Tchekov e por autores americanos como Poe, Hemingway, Melville. Resulta daqui um realismo crítico de estilo muito pessoal, caracterizado por grande depuração, tanto ao nível narrativo como sintático e vocabular, uma prosa viva e objetiva que foi tendo na atividade jornalística, desenvolvida ao longo dos anos, a sua oficina permanente.
A ligação do autor ao jornalismo que começou na adolescência e que se manteve regularmente, tem como marcos mais importantes deste percurso as passagens pela revista Almanaque, pelo Jornal do Fundão, pelo Diário de Lisboa e pelo Público.
É também apontado à sua escrita um cariz cinematográfico, de certa forma corroborado pelas várias adaptações de textos seus para o cinema. A adaptação ao cinema de Balada da Praia dos Cães, realizado por José Fonseca e Costa, sobre o romance homónimo de 1982, valeu a Cardoso Pires o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores. Publica ainda em 1987 Alexandra Alpha, best-seller à época, representando um Portugal pós-1974, vendo nele toda a violência do conflito económico dos primeiros tempos da revolução. De profundis, Valsa Lenta (1997) uma das suas últimas obras a par com Lisboa – Diário de Bordo, é apresentada por Cardoso Pires “como uma «viagem à desmemória», num relato posterior ao acidente vascular cerebral que o atingiu em 1965, do qual fixa pormenores aleatórios, desconexos de quem veio das trevas de uma doença muito grave para a luz da memória.”. (Eunice Cabral, José Cardoso Pires, Centro Virtual Camões, pág. eletrónica)
Como dramaturgo, as suas peças O Render dos Heróis (1960) e Corpo Delito na Sala de Espelhos revelaram-se marcos importantes da dramaturgia portuguesa da segunda metade do século. O Render dos Heróis (1960), levada à cena pela primeira vez em 1965, no Teatro Império de Lisboa, com uma encenação histórica de Fernando Gusmão, música de Carlos Paredes e interpretações, entre outros, de Carmen Dolores e Rui de Carvalho, será mais tarde (1989) a peça escolhida para a inauguração do Teatro da Malaposta, desta vez com encenação de Mário Barradas e música de António Victorino de Almeida. Corpo Delito na Sala de Espelhos, uma análise do «submundo da polícia política e [do] tecido psicológico da sua identificação como corpo de terror», foi levada à cena em 1979 no Teatro Aberto, em Lisboa, também sob direção de Fernando Gusmão e com interpretações, entre outros, de Lia Gama, Mário Jacques e Rui Mendes.
Integrado Marginal – Biografia de José Cardoso Pires (Bruno Vieira Amaral, 2021) que condensa, no título, a tensão central da vida e da carreira do escritor: por um lado, plenamente integrado no panorama cultural e institucional português; por outro, marginal pela recusa das convenções, pela crítica aberta e pela postura de insubmissão. Apresenta Cardoso Pires como um autor exigente, para quem a escrita era um exercício de rigor e paciência, e que desenvolveu ao longo da sua escrita uma verdadeira “sintaxe citadina”, incorporando a experiência urbana na sua obra, marcada pela influência anglo-saxónica, determinante nas suas primeiras leituras e opções estéticas, rejeitando o sentimentalismo e o confessionalismo. Reconhecido como um dos maiores escritores portugueses do século XX, a sua obra permanece como um marco fundamental da literatura em língua portuguesa.
A sua obra foi premiada internacionalmente com o Prémio União Latina, Roma (1991); Astrolábio de Ouro do Prémio Ultimo Novecento, Pisa (1992) ; Prémio Especial da Associação de Críticos, de São Paulo, Brasil (1987) com Alexandra Alpha (1987); em Portugal, venceu o Prémio Camilo Castelo Branco com Hóspedes de Job (1963); Prémio D. Dinis e Prémio da Crítica, atribuído pela Associação Internacional de Críticos Literários com uma das suas últimas obras De Porfundis, Valsa Lenta (1997); tendo ainda o conjunto da obra sido distinguido com a atribuição, em 1997, do Prémio Pessoa e, em 1998, do Prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores. Foi ainda condecorado com a Ordem da Liberdade e a Grã-Cruz de Mérito Cultural.
CDAP/Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. V, Lisboa, 1998