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sexta-feira, 19-04-2024
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Biografia

Biografia
                  

Cesário Verde  
[Lisboa, 1855 - Lisboa, 1886]  

Cesário Verde
Poeta da 2ª. geração realista. Nasceu numa família de comerciantes abastados, oriunda, por linha masculina, de Génova e estabelecida em Lisboa desde a primeira metade do século XVIII, com negócio de ferragens. Os seus ascendentes directos em Portugal, sem excepção (além de vários outros parentes), foram (e ele mesmo, de resto, a seu tempo) ferrageiros. O pai, José Anastácio Verde, tinha o seu comércio na Rua dos Fanqueiros, bem no coração da «parte mercantil» da cidade. Cesário devia suceder-lhe nos negócios, caso não tivesse morrido primeiro. Aliás, todos os seus irmãos – excepto o mais novo, Jorge Verde (1861-1945) – «morre[ram] primeiro do que o pai»: um (uma menina) em criança e outros dois na flor da idade: Maria Júlia em 1872 e Joaquim Tomás dez anos depois (aos 18 e 24 anos, respectivamente), ambos ceifados pela mesma doença – a tuberculose – que havia de vitimar, por último, o poeta.

Por ocasião da peste que assolou Lisboa no começo da segunda metade do século («em dois verões, seguidamente»: a cólera-morbo em 1856 e a febre-amarela em 1857), a família «fugiu da capital» e foi refugiar-se na quinta de um parente em Linda-a-Pastora, a pouco mais de uma dezena de quilómetros do «foco da epidemia».

Nesse «salutar refúgio» Cesário passou parte da infância e, pelo resto da vida, longas temporadas por ano («desde o calor de Maio aos frios de Novembro»).

Dos seus estudos sabe-se apenas que em 1865 concluiu a instrução primária e que frequentou o Curso Superior de Letras (três ou quatro meses, apenas) no ano lectivo de 1873-1874. Ignora-se o que e como terá estudado entretanto, sendo, porém, certo que não suspendeu os estudos depois do exame das primeiras letras, pois numa das suas cartas a A. Macedo Papança, futuro conde de Monsaraz, faz referência aos «temas de francês» dos «[seus] tempos de criança» e noutro lugar (cf. O Sentimento dum Ocidental) alude a um «[seu] velho professor nas aulas de Latim».

De resto, a correspondência comercial da loja do pai redigida pelo seu punho mostra que sabia francês e inglês, assim como o que se infere das suas leituras, algumas (francesas) citadas pelos títulos originais na correspondência com Silva Pinto e Monsaraz.

Também é de crer que tenha seguido estudos especializados de comércio, pois por mais de uma vez faz menção das «[suas] habilitações comerciais». De qualquer modo, a correspondência comercial da firma J. A. Verde, Lda., já se achava a seu cargo em 1872, o que permite sabê-lo desde essa altura, pelo menos, «empregado no comércio».

Deve dizer-se que, ao tempo, os negócios do pai não se circunscreviam apenas ao comércio de ferragens; com efeito, tendo herdado em 1869, por morte do seu antigo proprietário, a quinta de Linda-a-Pastora, o Sr. José Anastácio tornara-se também agricultor e dedicava-se então, ou ia dedicar-se dentro em pouco (a partir de 1874, pelo menos), à exportação de fruta para o estrangeiro.

Cesário viria, assim, a repartir-se profissionalmente entre as ferragens da Rua dos Fanqueiros e os «pomares burgueses e produtivos» de Linda-a-Pastora. No entanto, ao iniciar-se na vida prática aos 16 para 17 anos, o futuro ferrageiro/lavrador já devia ter outras ambições que não apenas comerciais. Não se lhe conhecem, é certo, poemas ou outra literatura desse tempo nem anterior, e tão-pouco há na correspondência trocada em 1871 com João de Sousa Araújo qualquer alusão a trabalhos ou projectos literários seus; contudo, a convivência com aquele escritor, sete anos mais velho e (aos olhos de Cesário) «já muito versado nas lides literárias», deve ter-lhe despertado o desejo de vencer a «pouca habilidade da pena» e de ingressar também na vida intelectual.

O facto é que em 1873 começou a escrever poesia e decidiu matricular-se no Curso Superior de Letras. Não teve, porém, êxito nos estudos, abandonando-os alguns meses depois, sem chegar a fazer exames; mesmo assim, o seu principal objectivo – que era, ao fim e ao cabo, penetrar no meio literário – foi atingido de imediato através do conhecimento travado nas aulas com o jornalista Silva Pinto, pela mão de quem logo passou a frequentar a boémia do Café Martinho, onde estabeleceu as primeiras, e algumas das mais duradouras, relações literárias. João de Deus, Gomes Leal, Junqueiro, Fernando Leal, Luciano Cordeiro, o conde de Monsaraz, Cristóvão Aires, Coelho de Carvalho, H. Lopes de Mendonça, Fialho de Almeida, Bettencourt Rodrigues, Jaime Vítor, Jaime de Séguier, Henrique das Neves, Mariano Pina, etc., contam-se entre os homens de letras do seu tempo com quem privou ou de quem foi amigo, alguns, já então, figuras proeminentes nas letras, outros no início da fama e alguns de quem não (ou mal) rezaria a história.

Tanto como no Curso Superior de Letras, porém, Cesário também não teria êxito na vida literária. Alguns amigos reconheceram-lhe talento, mas não faltou quem, de entre o vulgo intelectual do tempo, abominasse os seus versos prosaicos, exacerbadamente realistas. Os comentários da imprensa reflectiam essa abominação crassa e feriram a sensibilidade do poeta ao ponto de o levar a espaçar a colaboração nos jornais e mesmo a suspendê-la por largo tempo, chegando a fazer crer aos amigos que abandonava definitivamente a literatura.

Em 1879, «falto de estímulos» e farto da «apatia» da vida de Lisboa, foi assaltado pela «ideia fixa, a monomania de partir para [a França]» e solicitou a Bettencourt-Rodrigues, ao tempo a estudar Medicina em Paris, que «[lhe] arranjasse um cantinho naquela formidável capital de trabalho, de inteligência, de febre».

Não viu a sua aspiração realizada nessa altura, mas acabou por conseguir visitar o país que era a sua «paixão» em 1883, embora apenas durante cinco semanas e em viagem de negócios (com um projecto de exportação de vinhos). Bordéus devia ser, então, o destino da viagem, mas o poeta arranjou forma de, antes, se dirigir a Paris, sob outro qualquer pretexto comercial.

Regressado a Lisboa, ainda acalentou por algum tempo o sonho de estabelecer relações comerciais com a França, para o que se considerava «habilitado mais do que ninguém»; mas, falhadas as negociações com Bordéus, as ilusões em breve se dissiparam. Por outro lado, o trabalho na loja de ferragens e na quinta absorvia-o (ou o poeta, descorçoado com a literatura, se deixava absorver por ele) cada vez mais.

No espaço de quatro anos – de 1880 a 1884 – não publicaria uma linha em jornais e revistas. Não se lhe esgotara o estro e tão-pouco deixara de frequentar o Café Martinho e a Cervejaria Leão de Ouro, onde se reuniam os pintores «modernos» chamados o «Grupo do Leão»; contudo, manteve, por todo esse tempo, um «desdém solene» pela imprensa.

É verdade que em 1884 voltou a publicar alguns poemas, mas, de qualquer maneira, aos 29 anos, já nada parecia esperar da vida e continuava a confessar, entre «desgostoso e azedo», «[sentir] só desdém pela Literatura».

O longo poema Nós, publicado naquele ano, não assinalou, com efeito, um regresso à vida literária: foi, antes, o seu testamento poético – uma espécie de memórias de família, com a reconstituição da vida laboriosa na quinta, ao sol, ressumando energia, saúde, a compensar a lembrança dos irmãos mortos e a suspeita de que em breve seguiria o mesmo destino («eu que de vezes tenho o desprazer / de reflectir no túmulo!»). A verdade é que a saúde começava a vacilar-lhe.

Em 1885 acentuava-se a debilidade do seu estado e no ano seguinte, pelo começo de Março, iria adoecer gravemente dos pulmões. A medicina (Sousa Martins) deu-o por perdido. O recurso a uma mudança de ares, primeiro em Linda-a-Pastora e depois em Caneças (no Lugar d' Além), apenas lhe deu algumas esperanças de cura, mas, por fim, nem a «química» nem o «estímulo [...] da sua vontade» puderam nada contra o avanço da doença. Ainda voltou a Lisboa, em Junho (não à «parte mercantil», mas ao subúrbio, instalando-se na casa de um amigo da família, ao Paço do Lumiar). Tinha, porém, a vida por um fio e morreu um mês depois. Na semana seguinte, Silva Pinto fazia saber pela imprensa o seu propósito de tomar para si «a honra e a responsabilidade» de ser «o editor do [...] querido poeta», «satisfazendo [assim] nobilíssimos desejos de amigos e admiradores de Cesário Verde» e ao mesmo tempo executando, afinal, um projecto seu, concebido (dizia) «dias antes da morte do poeta».

Um mês depois já tinha, «sobre a banca de trabalho, todos os poemas que [entrariam] no Livro de Cesário Verde» e em Abril do ano seguinte fazia sair do prelo, impresso pela Elzeviriana, de Lisboa, e «publicado por [e a expensas] de Silva Pinto», O Livro com aquele título (de Cesário Verde), contendo 22 poesias e um retrato do poeta feito em Paris, de memória, por Columbano, uma dedicatória a Jorge Verde («o querido irmão do poeta»), um prefácio assinado «Silva Pinto» e notas finais (estas e a dedicatória também de Silva Pinto). Não era «a edição completa dos Versos de Cesário Verde», como – por lapso, ou porque teria sido essa, ao princípio, a intenção do editor – chegara a ser noticiado (ver Ilustração, Setembro de 1886).

Com efeito, Silva Pinto omitira as primeiras poesias do amigo (todas as de 1873), consideradas por ele mesmo (Cesário) «muito inferiore», e ainda «outros versos» (alguns citados pelos títulos em nota final) igualmente «condenados pelo autor». Isto vinha explícito no fim do volume, mas nem tudo ficava claro quanto à organização de O Livro e às discrepâncias que se verificavam no texto (principalmente das poesias mais antigas) em relação às versões dadas a lume anteriormente, em vida do poeta.

De facto, sem qualquer justificação do editor, as poesias vinham agrupadas em duas partes intituladas «Crise romanesca» e «Naturais» e nem todas eram transcritas ipsis verbis da imprensa onde Cesário Verde as tinha publicado. A explicação, porém, já tinha sido dada em A Folha Nova (nº. 76, Agosto de 1886), segundo a qual Silva Pinto teria tido em suas mãos «todos os manuscritos» e um «plano do Livro» deixados pelo poeta e se propunha respeitá-los «fielmente [...], nas variantes e nas supressões, em tudo». De qualquer maneira, a edição de Silva Pinto não foi questionada por largo tempo quanto à organização nem quanto à fixação do texto.

Ainda nos anos 40, depois de reimpressa cinco vezes sem ter sido objecto de crítica, Luís Amaro de Oliveira, que iniciara nessa altura a pesquisa e divulgação dos «dispersos» excluídos dessa edição, não punha em dúvida que O Livro de Cesário Verde «constituía [...] uma selecção deixada pelo autor». A mesma opinião foi mantida por Cabral do Nascimento, quando procedeu em 1952 à revisão do texto para a 9ª. ed. A suspeita de que Silva Pinto não se limitara a dar à estampa um livro deixado pelo autor pronto a publicar só foi levantada mais tarde por António Salgado Júnior, que, todavia, admitiu ter o editor intervindo apenas na organização de O Livro, e não na correcção do texto.

Os elementos reunidos por alguns investigadores que prosseguiram as pesquisas encetadas por L. Amaro de Oliveira, como Joel Serrão, Pedro da Silveira, João Pinto de Figueiredo, entre outros, não permitem, todavia, saber ao certo se pelo menos parte das correcções sofridas pelo texto de Cesário Verde na edição princeps são ou não inculcáveis a Silva Pinto. Joel Serrão, que exaustivamente analisou e comparou os dados recolhidos até ao presente sobre o problema, não encontrou a resposta.

A última palavra sobre a egenuinidade do texto de Cesário Verde permanece adiada. Os seus primeiros versos, escritos aos 18 anos (desde Abril de 1873 ao começo do ano seguinte), são jocosos, por vezes de um humorismo cínico, à maneira, e certamente sob a influência, de João Penha. Nessa altura, o autor do Vinho e Fel ainda não tinha publicado nenhum livro, mas a sua poesia, divulgada pela revista coimbrã A Folha (1868-1873), de que era director e onde convergiam os poetas parnasianos, já havia alcançado notoriedade nos meios literários. Cesário Verde deve tê-la conhecido através dessa revista, que o seu amigo João de Sousa Araújo, residindo ao tempo em Coimbra, com certeza lhe havia de ter feito chegar às mãos. De qualquer modo, a musa que ri na lira de João Penha – pedestre, «[vestida] à burguesa», impudente, desmistificando o amor convencional que ainda plangia nas destemperadas liras românticas – é a mesma que inspira os primeiros versos de Cesário Verde. Nota-se, porém, na sua poesia desta fase – que, de resto, foi assaz breve –, uma evolução muito rápida no sentido do aperfeiçoamento da expressão, do rigor do verso, ao mesmo tempo que a nota humorística vai perdendo ênfase, como se a veia jocosa se fosse esgotando à medida que o poeta ia vencendo a «pouca habilidade da pena», pondo maior empenho no trabalho poético – digamos, tomando-se mais artista, mais consciente da própria poesia.

Pouco da sua obra dessa fase incipiente fazia prever o poeta que, logo a seguir, aos 19 anos (veja-se a sua poesia a partir de Fevereiro/ Março de 1874), se ia revelar entre os maiores, e sobretudo mais originais, do seu tempo. Foi a essa originalidade que ele ficou devendo a incompreensão desgostante dos contemporâneos, mas também a sua permanência, mais do que todos os da sua geração, na poesia das gerações seguintes, até hoje. São, a este título, notáveis duas críticas, das poucas suscitadas pela sua poesia na imprensa do tempo – uma no início da sua vida literária, outra pela altura da publicação de O Livro de Cesário Verde –, de Ramalho Ortigão e de Henrique Lopes de Mendonça, saídas em As Farpas, nº. 12, 1874, e no Jornal de Domingo, Julho de 1887, respectivamente. Ramalho Ortigão, exemplificando com «alguns versos do género baudelairiano» do jovem Cesário Verde a «tendência poética da nova escola portuguesa» – que, dizia, aqueles versos «[patenteavam] bem claramente» –, inculcava-lhe a representatividade de qualquer «coisa» de novo (uma «nova escola portuguesa», suponhamos, cujo alcance ele, crítico, estava longe de prever, mas que relacionava acertadamente com a imitação em Portugal «[dos] processos literários e [dos] ideais artísticos de Charles Baudelaire», a quem atribuía (e aqui também não errava) «o grande mérito de haver criado a língua da decadência do segundo império, de ter fixado na linguagem as fosforescências do charco, as cintilações do estilo negro». Cesário não ia propriamente transpor para a poesia portuguesa essa linguagem, senão ocasionalmente em alguns poemas, mas, como o poeta das Fleurs du Mal, provocar, mediante uma linguagem de expoente realista, a epifania do real poético no próprio real da prosa do mundo moderno.

Quanto à crítica de H. Lopes de Mendonça, não podia ser mais exacta na inventariação de quanto na poesia de Cesário Verde chocava o gosto da época, ou seja, «a procura intencional de originalidade, que destrói a espontânea e brilhante factura dos versos; a excêntrica invasão do prosaísmo, que perverte e corrói a poesia na sua própria essência; a substituição das estafadas metáforas do lirismo romântico por outras, sem dúvida mais extravagantes, mas com certeza menos racionais e compreensíveis; a adjectivação imprevista e abstrusa, que frequentemente dirime [...] a poética singeleza do pensamento».

Não obstante, a influência de Cesário Verde começa a notar-se cedo na poesia portuguesa, mesmo na de alguns contemporâneos, como Coelho de Carvalho, Xavier de Carvalho, António Fogaça, por exemplo, acentuando-se, porém, a partir do fim do século e tornando-se constante, pode dizer-se, no século XX. Ver, por exemplo, António Nobre, Camilo Pessanha, Roberto de Mesquita, Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa, Duarte de Viveiros, os neo-realistas e alguns surrealistas (Cesariny, principalmente), António Manuel Couto Viana, entre outros, para citar alguns casos concretos.

A sucessiva actualidade da sua poesia deve-se, por um lado, à intemporalidade própria de toda a grande poesia (se a intemporalidade da arte não é uma ilusão) e, por outro lado, à forte originalidade que a caracteriza, em parte procurada intencionalmente ou resultante de influências assimiladas de forma muito pessoal (de Baudelaire, por exemplo), noutra parte, e sobretudo, devido à própria índole poética do autor, «frio, pausado, calculista, como todas as organizações criadas [no] meio comercial», refractário à abstracção e às expansões líricas, pouco espontâneo como artista, escrevendo mesmo com dificuldade («não sei executar o que concebo e para o meu pulso a coisa mais pesada é uma pena») e ao mesmo tempo dotado de um «gosto literário muito exigente». Tais predicados fizeram dele um «artista muito lúcido, com invulgar consciência crítica» (Jacinto do Prado Coelho), ao mesmo tempo que a sua atenção ao real imediato, às trivialidades do quotidiano, o levou a seleccionar um vocabulário sem tradição poética e desde aí insólito na poesia do tempo, com o qual abriu caminho à modernidade, a ponto de Mário de Sá-Carneiro o ter designado de «poeta futurista». Por outro lado, lavrador em Linda-a-Pastora e comerciante na Rua dos Fanqueiros, fixou o campo e a cidade na sua objectiva em instantâneos de repórter fotográfico, que depois trabalhava em estúdio, reproduzindo-os com fidelidade ou recortando a chapa, fabricando colagens e até obtendo, por vezes, composições surrealizantes.
in Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. II, Lisboa, 1990