Mário Sacramento
[Ílhavo, 1920 - Ílhavo, 1969]
Conclui o curso de Medicina em 1946, torna-se em seguida especialista em gastro-enterologia (Paris) e exerce clínica na cidade de Aveiro durante toda a vida.
Tais factos, de ordem académica e profissional, são continuadamente vivenciados por Mário Sacramento como barreira intransponível em ordem à assunção plena de uma desejada carreira no campo das letras; escolhe mesmo o emblemático título Ensaios de Domingo para o volume onde reúne parte substancial da actividade crítica dispersa em publicações de índole literária.
Com insistência refere no Diário – o qual cobre os dois últimos anos de existência – que os seus grandes projectos literários ficaram «para sempre num limbo, num primeiro arranque estiolado». E à evidência «de um médico feito à força de um escritor nato» haverá que acrescentar a experiência dolorosa da censura, da perseguição e mesmo da prisão política.
Será detido por três vezes, a primeira delas apenas com a idade de 18 anos, na qualidade de dirigente associativo do Liceu de Aveiro. Integra, no ano de 1946, a Comissão Central da organização de juventude do Movimento de Unidade Democrática (MUD-Juvenil), participando igualmente nas campanhas subsequentes da oposição democrática. A ele se deve, também, em boa medida, a realização em Aveiro dos I e II Congressos Republicanos, ocorridos respectivamente em 1957 e 1969.
Ante o dispositivo repressivo do Estado Novo, os ideários da sua família intelectual, visando em bloco uma profunda transformação social e política, apenas conseguem sair do anonimato se assumirem uma aparência literária. Ele mesmo esclarece na citada fonte confessional: «não tendo podido afirmar-se, no plano ideológico, filosófico e político-social, em termos de linguagem directa, dados os óbices da Censura, ausência de jornais e revistas, impossibilidades de reunião e agrupamento, apreensão de livros, prisões arbitrárias, a minha pobre geração adoptou a literatura como sucedâneo desses meios de comunicação e de diálogo com a realidade».
É sabido que o princípio da arte como reflexo está na base do «neo-realismo», movimento do qual Mário Sacramento se torna conhecido como um dos mais destacados teóricos, escrevendo regularmente em publicações literárias tão emblemáticas como Seara Nova (1921-1979), Sol Nascente (1937-1940), O Diabo (1934-1940) e Vértice (aparecida em 1942), para além de uma presença intermitente em dois jornais de grande circulação, Comércio do Porto e Diário de Lisboa.
Mas é em Há Uma Estética Neo-Realista, porventura o seu texto mais lido e discutido, que se sustenta com maior fôlego a tese segundo a qual o realismo materialista «ocorre na literatura, como impulso consciente, quando à expressão incumbe incluir, na linguagem específica da arte, os aspectos revolucionários que a ciência haja descortinado no real».
A esta prática doutrinária desde muito cedo associa uma outra de interpretação mesma de textos de ficção literária. A autores como Eça e Pessoa dedica longos ensaios onde tenta aplicar o que é designado de «método dialéctico de interpretação literária». Situando a obra de cada um no contexto histórico específico, vê no entanto em ambas uma reacção, já por via da «ironia realista», já por via do «absurdo», às ideologias «burguesa» e «pequeno-burguesa» prevalecentes.
Os escritores contemporâneos merecem também a atenção crítica de Mário Sacramento. E são mundividências literárias por vezes assaz distantes daquela em que se insere a sua família intelectual: do imagismo ao surrealismo, do existencialismo ao novo romance, a análise pode recair sobre Sophia e Jorge de Sena, Cesariny e O'Neill, Urbano Tavares Rodrigues, Vergílio Ferreira e Namora, Augusto Abelaira e Almeida Faria.
in Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. V, Lisboa, 1998