No dia 2 de outubro de 1925, nasceu na Aldeia do Peso, distrito de Castelo Branco, José Cardoso Pires, uma das vozes maiores da literatura portuguesa da segunda metade do século XX.
Ainda criança mudou-se com a família para Lisboa, cidade que se tornaria a sua casa e, em muitos aspetos, cenário da sua escrita. Frequentou Matemáticas Superiores na Faculdade de Ciências, mas cedo abandonou os estudos para se alistar na Marinha Mercante. As viagens pela costa africana foram apenas o prelúdio de uma vida dedicada à literatura e ao jornalismo cultural.
Ao longo da sua carreira, foi editor, crítico literário, cronista e romancista, com uma obra que percorre o conto, o ensaio, o teatro e a narrativa longa. Desde Os Caminheiros e Outros Contos (1949) à sua obra-prima, O Delfim (1968), passando por títulos marcantes como Alexandra Alpha (1987), O Hóspede de Job (1963), Balada da Praia dos Cães (1982) ou De Profundis, Valsa Lenta (1997), José Cardoso Pires deixou-nos uma escrita depurada, incisiva e crítica que retrata a realidade social e política portuguesa desde a época da ditatura até ao período pós 25 de Abril de 1974.
Traduzido em várias línguas, distinguido com prémios nacionais e internacionais, condecorado com a Ordem da Liberdade e a Grã-Cruz de Mérito Cultural, Josá Cardoso Pires soube aliar rigor estético e olhar crítico, tornando-se uma figura de referência no panorama literário e cultural português.
E porque a melhor forma de recordar um escritor é escutá-lo na sua própria voz, partilha-se um excerto da obra E Agora, José?, que ilustra bem o génio literário de José Cardoso Pires:
De resto quem te ouve? Quem dá crédito à tua liberdade?
Vamos, fuma, José. Pensa bem esse cigarro. Mede e golpeia a memória, repisa nos teus avisos enquanto o cabelo te embranquece. Olha, é entardecer. E está tão claro.
Aí, nesse espelho, há um não sei quê de pobre diabo no cidadão que te faz frente, aferrado a um orgulho de pataco. Orgulho? Pior para ele, que pouco fez para mudar as coisas e muito para não se deixar mudar. Razão? Vigilância? Está bem, deixa-o dizer.
Deve andar nos cinquenta, mais ano, menos ano, e se calhar é por isso que te sonda com tamanha inclemência. Cinquentas, meio século de vislumbrada malícia de si mesmo e de nicotina. Cancro apalavrado, ai coitadinho. De quando em quando noto-lhe talvez um perpassar de ironia a tranquinar-lhe no rosto, mas se o tem é luz breve e para mais magoada. Não dá sequer para temperar o ar endurecido que há nele e que provém mais do desalinho e do à-balda que doutra coisa. No resto, pouco a acrescentar. Visagem martelada, máscara prevenida, assimetrias de quem se talhou ao azar – e disse. Acta est fabula, se assim me posso exprimir.
É este o homem que te contempla, José. Que te fuma. Que te duvida.
E Agora, José? (Publicações Dom Quixote/2a EDIÇÃO, 1999)
Fique atento às nossas plataformas digitais (Instagram e Facebook) e junte-se a esta homenagem a um dos grandes nomes da literatura portuguesa.