Afonso Duarte
[Ereira/Montemor-o-Velho, 1884 - Coimbra, 1958]
Poeta e professor primário, bacharelou-ao em 1913 em Ciências Físico-Naturais. Na vida deste grande Mestre (como era conhecido entre os que com ele conviveram) ocorrem duas circunstâncias menos favoráveis, que terão contribuído em parte para transmitir à sua fascinada visão das coisas e da vida traços de ironia e revolta, mas também de superior resignação, de que os seus aforismos poéticos da última fase são um eloquente exemplo: a doença (paralisia dos membros inferiores) de que nunca se recompôs completamente, e o inesperado e compulsivo afastamento do cargo de professor, que exercia com um zelo e dedicação exemplares, por decisão de forças afectas ao regime, que lhe era adverso.
1906 e 1956 são datas que balizam a actividade literária deste poeta, cuja obra tem a particularidade de ir acompanhando atentamente os diferentes movimentos e correntes literárias surgidos na primeira metade do século, sem nunca perder a feição que lhe é própria.
A primeira recolha de poesia saiu em 1929 nas Edições «Presença», Os 7 Poemas Líricos, e agrupa, de acordo com a arrumação que lhe deu o próprio Afonso Duarte, a poesia de Cancioneiro das Pedras (1912), Tragédia do Sol-Posto (1914) e Rapsódia do Sol-Nado seguida do Ritual do Amor (1916) e poesia avulsa publicada em jornais e revistas. É a mais ampla recolha e a que apresenta maior variedade nos temas, na forma e nos motivos de inspiração.
Não é, no entanto, a que fará do poeta uma das vozes mais originais da vertente tradicional do lirismo português. Será Ossadas, segunda recolha, publicada dezoito anos depois e a sua pequena obra-prima, o livro que conseguirá dizer em «Poemas breves/como o instante da flor/que abriu para morrer» a vertigem do momento, numa obsessão que o par flor/criança metaforiza tornando-se expressão corrente do dualismo morte/vida e até do sentimento bem «presencista» da duplicidade do «eu». A originalidade da poesia contida neste volume, e uma das razões de demarcação relativamente à anterior, reside num novo aperfeiçoamento dos valores semânticos dos enunciados através de um especial relevo dado ao ritmo, aos paralelismos e repetições, a uma ecolalia sonora de feição popular e a outras particularidades formais do significante, cujo efeito é o de imprimir na tradição marcas estéticas de modernidade, como seja, um fragmentarismo conceptual e sintáctico, uma concisão epigramática ponteada de acerbo e ironia e um lirismo antidiscursivo com reminiscências medievais.
Por tudo isto, é costume situar a obra poética duartina entre o saudosismo e o modernismo, ainda que, em virtude justamente da originalidade com que trabalha, desde cedo, um material de raiz tradicional e popular, da Saudade a sua poesia mais antiga aproveite apenas os ingredientes necessários («aqueles elementos sosistas ou saudosistas que a minha geração encontrou muito vivos no seu caminho») que fazem participar as coisas físicas da Natureza (pedras, águas, choupos, etc.) daquele halo religioso e metafísico tão ao gosto dos poetas saudosistas quando falam, por exemplo, da luz mística do crepúsculo ou de «folhas a rezar Ave-Marias», e que na sua poesia se «paganizam» ao contacto de um primitivismo terrunho, camponês, sem mistérios, francamente distanciado dos grandes voos transcendentes e místicos à Pascoaes.
Em Os 7 Poemas Líricos o autor idealista da Saudade está voltado para realidades palpáveis, como de realidades presentes e reais (a guerra, o avanço da ciência e da técnica, a Era Nuclear, etc.) nos fala a poesia contida no tríptico das redondilhas. Ali, é uma Natureza que plasticiza e personifica criando certas passagens a lembrar o alegorismo vicentino, que também nos assalta à leitura de Canto de Morte e Amor (1952); uma Pátria motivo de investidas épico-liricas sob inúmeras formas (a do orgulho de ser português, a da memória dos feitos dos navegantes que é preciso celebrar, a da referencialidade elogiosa a Camões, como símbolo de uma Pátria e de uma Poesia a refazer), e um Povo, herói e vítima, mais vítima do que herói, surpreendido na comovente expressão da sua condição humana: a luta pelo pão, o cansaço, a vida e a morte.
Pelos temas de raiz humanista, que são uma constante em toda a sua obra, bem como pelo uso de alguns esquemas rítmicos e rimáticos menos inovadores, a poesia de Afonso Duarte prolonga ainda certos filamentos poéticos herdados da geração de 70. No período «presencista», o poeta reelabora-os de acordo com a «sinceridade» que põe na sua arte; mais tarde, no contacto com neo-realistas, com o rigor de uma grande objectividade lírica.
Publicou também Post-Scriptum de Um Combatente (1949), na linha de Ossadas (1947), Sibila (1950) e Canto de Babilónia (1952) formando estas duas últimas obras, com o Canto de Morte e Amor, o já referido tríptico das redondilhas. Em 1960 saiu, póstumo, o volume Lápides e Outros Poemas, organizado por Carlos de Oliveira e João José Cochofel, que tiveram também a seu cuidado a 1ª. ed. da Obra Poética (Iniciativas Editoriais, Lisboa, 1956), onde se incluía o livro inédito O Anjo da Morte e Outros Poemas e um importante apêndice biobibliográfico, condensado na 3ª. e última ed. (1974) numa «Tábua bibliográfica».
Afonso Duarte colaborou ainda em diferentes revistas: A Águia, Rajada (1912-1914), que dirigiu, A Tradição (1920), A Nossa Revista (1921-1922), Tríptico (1924-1927), que fundou juntamente com Gaspar Simões, Branquinho da Fonseca, Vitorino Nemésio, Presença, Vértice, na colectânea Confronto (1946), etc.
Especialmente a partir de 1932, ano em que o forçaram a aposentar-se, Afonso Duarte dedicou-se a uma notável e infelizmente ainda pouco (re)conhecida actividade de investigação pedagógica, tendo deixado as seguintes obras, em volume ou separata: Barros de Coimbra (1925), Desenhos Animistas de Uma Criança de Sete Anos (1933), O Ciclo do Natal na Literatura Oral Portuguesa (1936) e Um Esquema do Cancioneiro Popular Português (1948).
in Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. III, Lisboa, 1994