António Ramos Rosa
[Faro, 1924 - Lisboa, 2013]
António Ramos Rosa frequentou em Faro os estudos secundários, que não concluiu por motivos de saúde. Trabalhou como empregado de escritório, desenvolvendo simultaneamente o gosto pela leitura dos principais escritores portugueses e estrangeiros, com especial preferência pelos poetas. Em 1945 vai para Lisboa e dois anos depois volta a Faro, tendo integrado as fileiras do M.U.D. Juvenil, onde militou activamente. Regressado a Lisboa, foi professor de Português, Francês e Inglês, ao mesmo tempo que estava empregado numa firma comercial, e começou a fazer traduções para a Europa-América, trabalho que nunca mais abandonaria e no qual veio a atingir notável qualidade.
O continuado interesse pela actividade literária levou-o a relacionar-se com um grupo de escritores que o incentivaram na publicação dos seus poemas e artigos de crítica, tendo colaborado em numerosos jornais e revistas. Com alguns desses escritores, fundou em 1951 a revista Árvore, que veio a ser uma das mais marcantes da década, procurando divulgar os textos dos poetas e prosadores portugueses mais significativos no tempo, bem como os grandes nomes da literatura estrangeira. Co-dirigiu também as revistas Cassiopeia e Cadernos do Meio-Dia.
A crescente importância que a actividade literária foi tomando na sua vida levou-o a certa altura a abandonar o emprego no escritório em que trabalhava, para a ela se dedicar exclusivamente, com todas as consequências que tal decisão acarretava.
A atitude crítica que permanentemente exercitou sobre a sua própria palavra como sobre a palavra alheia faz de A.R.R. um dos mais esclarecidos críticos portugueses contemporâneos, o que se manifesta em inúmeros artigos e recensões sobre poetas portugueses e estrangeiros, bem como na publicação de vários ensaios centrados na temática da poesia. A.R.R. tem, no entanto, o cuidado de separar de uma forma muito nítida a sua actividade de crítico, em que não pode deixar de utilizar critérios e referências racionais, da sua actividade criadora: enquanto poeta faz da ignorância e da radical suspensão de todos os saberes e hábitos adquiridos o único método para a eclosão da sua palavra poética. Na verdade, a procura da palavra justa para dizer as «coisas nuas» e a reflexão sobre a realidade e a possibilidade dessa palavra é, talvez, o único tema desta poesia, na qual é, no entanto, possível assinalar diferentes fases: recortando-se duma problemática neo-realista de solidariedade para com o destino dos homens e do mundo, O Grito Claro (1958) e Viagem Através de Uma Nebulosa (1960) utilizam uma linguagem e uma vivência ainda devedoras dessa estética, combinadas com uma imagética herdada do surrealismo. Mas encontramos já de uma forma incipiente nessas primeiras recolhas algumas das constantes da obra do poeta: um enraizamento pelo corpo na Terra, não numa Terra utópica e futura, mas na materialidade mais originariamente primitiva da natureza; uma libertação, pela palavra mais solitária, de todas as prisões e constrangimentos que a poderiam cercear; uma permanente atenção à materialidade da própria linguagem poética, que a desliga tanto da sua função representativa como da sua função expressiva (pois não se trata já de exprimir um real subjectivo, tão caro aos poetas líricos). Esta particular concepção da Poesia irá ser retomada mais tarde quer pelo grupo «Poesia 61», quer pelos poetas experimentalistas.
Após um decisivo encontro com a poesia de Éluard, A.R.R. abandona definitivamente a retórica e a imagística neo-realista e surrealista, para se concentrar numa palavra solar, pura e rigorosa, podemos dizer mesmo elementar, à medida que a exigência de um retorno à origem se tornará numa das suas obsessões. Exigência que lhe pedirá até para substituir à sua própria voz uma verdadeira voz inicial (título de uma recolha de 1960), memória da criação mais remota, que se ergue de um território onde se indistinguem sujeito e objecto. Como nota Eduardo Lourenço, a poesia de A.R.R. nunca mais abandonará esse porto «anterior a todos os portos». Esta poética do puro início expande-se a todo o espaço e a toda a matéria, através dum erotismo mediado pelo corpo próprio, pelo corpo da mulher, pelo corpo da terra, pelo corpo da palavra. Da apropriação destes espaços através da palavra poética, nunca dada a priori mas conquistada através de um desejo, de um esforço, de uma viagem, nasce uma felicidade exultante e viva que frequentemente nos é transmitida por metáforas de claridade.
O contraponto desta plenitude meridional é a dificuldade com que o poeta se debate ao tomar consciência da sombra que nasce da raíz de toda a realidade e da realidade de toda a palavra. A luta entre a luz e as trevas, que é central em Sobre o Rosto da Terra, vai invadindo gradualmente de negatividade a poesia subsequente, até lhe ameaçar toda a arquitectura em A Pedra Nua (1972), onde a plenitude solar dos primeiros livros é substituída pela inquietante suspeição sobre o poder dessa mesma palavra, num território cada vez mais calcinado, até ao limite dum dizer que perde o fio e se transforma num quase ininteligível balbuciar (Declives, 1980).
A partir de Volante Verde (1986) assistimos no entanto a uma espécie de «reconciliação com as palavras» através duma certa forma de integração da ausência, já não combatida mas incluída como forma estruturante da própria poesia. O poeta encontra então um novo fôlego, através da «enigmática profusão da terra», numa exaltação da natureza que adquire uma feição animista. O universo poético de A.R.R., jogando com um número relativamente restrito de vocábulos e de temas, dá predominância às palavras substantivas e elementares tais como: pedra, água, árvore, cal, mão, muro, e mesmo às formas mais ínfimas e humildes: unha, insecto, pó, cabelo, sopro, espuma, baba do caracol. Estes elementos são retomados e combinados caleidoscopicamente, em ciclos que continuamente se reiniciam. A exploração ontológica e poética vai-se processando em movimentos cada vez mais lentos e subtis, num itinerário em que a densidade do espaço e a substância dos objectos se vai tornando progressivamente mais permeável e transparente. A desmaterialização das coisas e da língua que as diz liga-se intimamente ao modo como o poeta apreende o ser do universo – misto de presença e de ausência, de verdade e não-verdade, de sim e de não (O Não e o Sim é aliás título de uma recolha de 1990). Criando um campo semântico sobre a finíssima linha de demarcação entre a afirmação e a negação, o poeta foge da dicotomia, da disjunção, da determinação, num espaço cada vez mais aberto e ilimitado, que se adequa cada vez melhor à manifestação «do que não tem nome». O poeta, que procura entrar em consonância com esse horizonte do real, torna-se também ele corpo místico e mítico do universo, onde se conciliam por fim todos os contrários.
Poesia de coordenadas eminentemente espaciais, ela tem evoluído ultimamente no sentido de uma mais acentuada articulação discursiva, a par de uma aguda consciência da passagem do Tempo, com as questões que essa consciencialização coloca: «será ainda possível construir sobre a cinza do tempo / a casa da maturidade com as suas constelações brancas?»
A. R. R. recebeu vários prémios de poesia, o primeiro dos quais pela obra Viagem Através de Uma Nebulosa, partilhado ex-aequo com Henrique Segurado. Em 1980, o Prémio do Centro Português da Associação de Críticos Literários, pelo livro O Incêndio dos Aspectos; em 1988, o Prémio Pessoa; em 1989, o Prémio APE/CTT, pela recolha Acordes, e, em 1990, o Grande Prémio Internacional de Poesia, no âmbito dos Encontros Internacionais de Poesia de Liège.
in Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. V, Lisboa, 1998