Guerra Junqueiro
[Freixo-de-Espada-à-Cinta, 1850 - Lisboa, 1923]
É um dos vultos mais proeminentes do século XIX português.
Literariamente, o seu valor como poeta começou a ser contestado na década de 20, através da crítica psicossocial à sua obra, iniciada por António Sérgio e seguida de outras reflexões (J. Régio, Casais Monteiro, V. Nemésio, etc.), que lhe reconhecem notável virtuosismo retórico de expressão – hábil, talentosa, eloquente –, mas que, na apreciação à natureza estética do talento do poeta, lhe apontam falta de rigor, de coerência e de profundidade, incongruente ordenação do espírito e substância intelectual inapta a suplantar o mero circunstancialismo de verdades epocais.
A ideia republicana, por um lado, seu ideário político, ideológico e cultural, e a ideologia poética de raiz romântica, por outro lado, o seu metafisismo e a sua religiosidade de base, tê-lo-iam acantonado fatalmente ao século XIX sem que a sua poesia lograsse perdurar além dele como obra de verdadeiro génio. Os que, pelo contrário, lhe sublinham a originalidade do pensamento e o valor da sua exuberância oratória, ou os que o celebram como o maior poeta vivo da então jovem República, esses, Oliveira Martins ou Pessoa, e mais recentemente José Marinho e outros, são capazes de entrever no universo junqueiriano fulgurantes antecipações sibilinamente lançadas aos caminhos da futura trajectória do lirismo nacional.
A ideia de uma Pátria enlouquecida, a quem a razão abandonou, a ideia de um Deus homem e a de um Cristo português, a visão bucólica do real, síntese de uma interpretação geral do universo com implicações que se estendem não só ao campo da literatura mas igualmente ao da «filosofia portuguesa» e ao da política, tiveram continuidade e são capazes, ainda hoje, de seduzir a quem compreenda ser uma estruturação metafórica o meio mais eficaz de a arte mimética fazer ver certas verdades invisíveis, ou fazer valer crenças pontuais inabaláveis. Por isso, não é de estranhar que o ritmo mecânico da versificação, os automatismos e os processos de cavilhamento (repetição de palavras e de ideias), a inflação de comparações binárias ou a estrutura dos poemas fundada em paralelismos sejam processos igualmente adequados a mimar o tipo de semantismo praticado, mais comunicativo que lúdico, e, ao mesmo tempo, que esses sejam os meios certos ao alcance de uma linguagem cujo único propósito é o de ser puro instrumento de ideias, temas, mensagens ou «narrativas» preexistentes e «oraculares».
A obra de Junqueiro é vasta e recobre um período bastante longo (data de 1866 a publicação do seu primeiro livro de versos, Mysticæ Nuptiæ, e de 1904 é uma das suas últimas e mais celebradas composições líricas, a Oração à Luz).
Pode tentar-se a ordenação das publicações mais importantes de acordo com as tónicas dominantes da sua copiosa verve: à inspiração arrebatadamente panfletária, satírica e iconoclasta corresponderiam obras de intuito social, onde se pretende, por intermédio da crítica à sociedade e de acordo com as directivas culturais da época, dar carácter científico à poesia: «A poesia é a verdade transformada em sentimento» (A Morte de D. João, prefácio); o tom íntimo, confidencial, religioso e metafísico guarda-o o poeta para o período em que se torna receptivo às inovações formais e à sensibilidade sugestiva dos simbolistas.
No primeiro caso estão A Morte de D. João (1874) e A Velhice do Padre Eterno (1885), que constituem as duas principais peças de uma trilogia subordinada ao tema da vitória da Justiça na Terra. A terceira peça, constituída pelo poema incompleto Prometeu Libertado, alegoria filosófica postumamente editada em 1926, contém a apologia fmal dessa vitória na fusão dos dois grandes símbolos: Cristo (a Fé) e Prometeu (a Razão). Em Finis Patriæ (1890) e Pátria (1896) retoma-se o tom arrebatado da sátira, a vocação panfletária e de novo a alegoria como processo estilístico de fácil impacte.
Estão no segundo caso obras como Os Simples (1892), colectânea de inegável valor e interesse documentais, por tratar-se de uma publicação que ocorre após prolongado silêncio [apenas pontualmente interrompido por alguns trechos compilados nas Poesias Dispersas (1920)] e que pretende corresponder, segundo o testamento do próprio poeta em «Nota» ao livro, a um período de profunda reflexão e «renascimento psicológico»: «De uma visão mais íntima e profunda do universo germinaram em mim novas emoções, e portanto uma nova arte.» Apresentando-se como uma «auto-biografia psicológica«, a obra é constituída por quadros campestres e bucólicos, bem localizados geograficamente («a Moleirinha é minhota. O Préstito Fúnebre minhoto é. Mas, coisa curiosa, o segundo canto – In Pulvis – é já todo transmontano»), donde se erguem, como figuras-símbolos extraídas de um contexto referencial todo ele agrário e português, o Pastor, a Moleirinha, o Cavador, os Mendigos, os Bois, o Castanheiro, etc. Não podem estas figuras nem esses quadros ser recebidos como «inteiramente reais, da realidade estrita, efémera e tangível», porque, jogando com a sua verdade histórica, o poeta criou-as e completou – «com a [sua] alma, o [seu] próprio ideal». Neste acabamento de alma e de ideal traça Junqueiro o seu testemunho psicológico autobiográfico – «quis mentalmente viver a vida singela e primitiva de boas e santas criaturas, que atravessam um mundo de misérias e de injustiças [...] sem um olhar de maldição para a natureza, sem uma palavra de queixume para o destino» –, muito semelhante ao de toda uma geração igualmente empenhada em fazer dos «proletários dos campos» o objecto da sua eleição. Assim, a verdade de Os Simples pode ser lida como a verdade do poeta, porque essa verdade é a de uma experiência comum, partilhável, a da ruralidade nos fmais de oitocentos. Em Os Simples tematiza-se uma das coordenadas mais importantes do «caso mental» português, uma das mais importantes e problemáticas a dar entrada no século XX em Portugal. Além desta obra, podem incluir-se no segundo grupo trechos líricos compilados nas Poesias Dispersas e, sobretudo, as duas Orações, a Oração ao Pão (1902) e a Oração à Luz (1904), que dir-se-ia completarem, numa reconstrução espiritualista mais alargadamente metafísica, o quadro místico-ruralista de Os Simples.
A par de uma carreira nas letras, Junqueiro, formado em Direito (1868-1873), notabilizou-se igualmente na política como deputado pelo Partido Progressista e na actividade diplomática como ministro de Portugal na Suíça, entre 1911 e 1914. Os seus discursos políticos e as suas reflexões doutrinárias estão reunidos nos volumes Horas de Combate (1924) e Prosas Dispersas (1921) e no prefácio a Os Pobres de Raul Brandão.
A importância destes escritos completa-se à luz do seu pensamento poético, como se confrma com a posterior influência directa que exerceram no movimento literário de cunho republicano Renascença Portuguesa. Mas, quer no plano cívico, quer no plano literário, a figura de Guerra Junqueiro é um lugar de constante peregrinagem espiritual, e uma referência cultural obrigatória para as gerações seguintes do meio século: ele foi o herói da I República, que termina em 1926 com a ditadura militar; o combate obstinado da Igreja como instituição, cuja influência recrudesce nos finais dos anos 20 e, last, but not least, uma das últimas vozes românticas, em cujo âmago se forjam muitas das imagens impressivas que afloram ciclicamente na literatura de tradição nacional.
in Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. II, Lisboa, 1990