Sidónio Muralha
[Lisboa, 1920 - Curitiba, Brasil, 1982]
Sidónio Muralha nasceu no dia 28 de Julho de 1920, em Lisboa – cidade onde frequentou o Curso Comercial das antigas Escolas Técnicas –, e faleceu em Curitiba (Brasil), a 8 de Dezembro de 1982.
Fez parte do movimento neo-realista português, integrando o grupo coimbrão do Novo Cancioneiro, até 1950, data em que parte em exílio voluntário para o Congo belga, como acto de contestação política contra o regime de Salazar. Os seus primeiros livros de poesia são escritos e publicados em Portugal – Beco (1941), Passagem de nível (1942), sendo estes dois reeditados conjuntamente em 1949, Companheira dos homens (1950) e Bichos, bichinhos e bicharocos (1949), o livro com que se estreia na escrita para crianças. Esta belíssima e cuidada edição – reeditada em 2010 pela althum.com / Centauro – apresentava ilustrações de Júlio Pomar e três poemas musicados – com reprodução das respectivas partituras – por Francine Benoit (musicóloga francesa que trabalhou no Jardim-Escola João de Deus e na Academia dos Amadores de Música, tendo sido amiga de Fernando Lopes-Graça). Esta obra e outras que se seguirão integram um conjunto de textos de autores neo-realistas, ou de algum modo ligados a este movimento, que, a partir de finais dos anos quarenta, começam a operar uma mudança qualitativa na literatura portuguesa para crianças, por via do tratamento de novas temáticas (a infância camponesa, em Alves Redol; as crianças pobres de meios urbanos, em Ilse Losa e Matilde Rosa Araújo; tópicos relacionados com um olhar mais científico sobre a vida natural, em Redol, também, e em Papiniano Carlos, para não referir outros aspectos em que avulta, por exemplo, uma certa crítica a comportamentos sociais, patente, aliás, no Autor de Bichos, bichinhos e bicharocos).
Depois de uma estadia de doze anos no Congo, Sidónio Muralha transfere-se para São Paulo, em 1962, fixando, posteriormente, a sua residência na capital do Estado de Paraná. Ainda em S. Paulo, funda, juntamente com o escritor Fernando Correia da Silva e o fotógrafo e artista gráfico Fernando Lemos, a editora Giroflé, dedicada exclusivamente à publicação de livros infantis e juvenis. Este audacioso projecto constituiu uma inovação no panorama editorial brasileiro pelo novo conceito de livro infantil: novidade no que respeita à qualidade gráfica, ao design moderno e colorido, aos novos formatos rectangulares e alongados, à escolha do papel Kraft e da capa dura, aspectos a que se somavam as boas escolhas textuais – Ou isto ou aquilo de Cecília Meireles (1919-1964), ilustrado por Maria Bonomi, Psiuuu... de Gerda Brentani (1906-1999), a par de contos de Fernando Correia da Silva (1931) e textos dramáticos de Guilherme de Figueiredo (1915-1997). Nesse mesmo ano, ou seja, em 1962, Sidónio Muralha recebe o Prémio Internacional da II Bienal do Livro de São Paulo pelos poemas de A televisão da bicharada, ilustrado por Fernando Lemos e com a chancela da Giroflé.
No Brasil, e a par da produção literária dirigida aos mais novos, Sidónio Muralha segue escrevendo e publicando livros para adultos – como Pássaro ferido (1972), Poemas de Abril (1974), O andarilho (1975), A mulher submissa (1975), A caminhada (1975), Pátria minha (1980) ou Um punhado de areia (1981) –, alguns dos quais sairão também em Portugal, como aconteceu igualmente com o romance O homem arrastado (1972), editado com a chancela da editora Atlântida, de Coimbra, e de uma das revistas ligadas ao neo-realismo: a Vértice.
Publica ainda Catarina de todos nós (1979), um dos raros exemplos, na literatura portuguesa para os mais novos, de um texto dedicado a um episódio marcante da resistência à ditadura salazarista: o assassinato, em 1954, de Catarina Eufémia, jovem camponesa alentejana em luta, juntamente com os seus companheiros, por melhores condições de vida.
Ainda em 1979, um ano após o falecimento da sua primeira mulher, Fernanda d’Almeida Muralha, casa-se com Helen Anne Butler e instala-se em Curitiba. Em 1988, Helen Muralha cria a Fundação Sidónio Muralha, na antiga casa Guillherme Buttler, onde nasceu e passou a sua infância.
Para além do prémio atribuído ao livro A televisão da bicharada, Valéria e a vida valeu ao Autor, em 1976, o Prémio Secretaria de Estado do Ambiente, que distinguia livros infantis de temática ambiental; e Helena e a cotovia, obra que seguia idêntica linha, recebeu o Prémio Portugal ’79, instituído pela Secção Portuguesa do IBBY (International Board on Books for Young People).
A produção literária para adultos de Sidónio Muralha, ainda que relevante e merecedora de destaque, não alcançou, todavia, a magnitude da sua escrita para crianças, talvez porque a infância fosse o território onde o Escritor se sentia mais necessário e onde poderia pôr em acção, através da escrita que era dirigida ao público infantil, o seu projecto social de um mundo mais justo. De resto, a atenção e o respeito pelas crianças transcorre na sua obra – essas crianças gravadas nos poemas de Os olhos das crianças, de 1963, que «olham os poetas (...) / mas não pedem cançonetas mas não pedem baladas / o que elas pedem é que gritemos por elas / as crianças sem livros sem ternura sem janelas / as crianças dos versos que são como pedradas». Sidónio Muralha não ofereceu «cançonetas» nem «baladas» às crianças-leitoras, mas brindou-as, sem dúvida, com uma obra de assinalável apuro estilístico que se distingue, no plano semântico, pela tematização da Natureza e das questões ambientais, da liberdade e da fantasia, e em que os ritmos brotam com leveza e magia dos jogos entre fonemas, das rimas e trocadilhos, potenciando a imaginação e construindo leitores diferenciados e capazes de dizer o mundo de uma forma mais humanizada, aptos, em suma, a fazerem cumprir o último verso do poema «Pintassilgo»: «Crianças, quebrem as grades / de todas as gaiolas do mundo».
Injustamente esquecido, em Portugal, país de onde disse nunca ter saído, o Brasil lembra e valoriza este poeta lusitano de forma tocante – os seus livros para a infância continuam a ser reeditados e a integrar os planos curriculares do Ensino Fundamental (Básico), juntamente com Ou isto ou aquilo (1964), de Cecília Meireles e A arca de Noé (1974), de Vinicius de Moraes – livros e autores que, no Brasil, operaram uma viragem na concepção estético-pedagógica de literatura infantil e juvenil a partir de inícios da década de sessenta, investindo na qualidade dos textos.
Registe-se, por último, que, em 2009, a editora Cosac Naify reeditou as primeiras edições da Giroflé, mantendo fidelidade aos originais e assinalando, deste modo, o significado histórico-cultural que tais livros tiveram no panorama editorial brasileiro.
Bibliografia selectiva: Bichos, bichinhos, bicharocos (1948), Lisboa: [Tipografia Garcia & Carvalho]; Um personagem chamado Pedrinho – vida de Monteiro Lobato contada às crianças (1970), São Paulo: Brasiliense; O companheiro (1975), Lisboa: Futura; A amizade bate à porta (1975), Lisboa: A Comuna; Valéria e a vida (1976), Lisboa: Horizonte; A dança dos Pica-Paus (1976), Rio de Janeiro: Nórdica; Sete cavalos na berlinda (1977), Lisboa: Plátano; Todas as crianças da terra (1978), Lisboa: Horizonte; Voa pássaro, voa (1978), Lisboa: Horizonte; Catarina de todos nós (1979), Lisboa: Caminho; Helena e a cotovia (1979), Lisboa: Horizonte; Film en couleur (1981), São Paulo: Digital Gráfica (obra escrita em francês); Terra e mar vistos do ar (1981), Lisboa: Horizonte; Um punhado de areia (1981), Curitiba: Lítero-técnica; O rouxinol e a sua namorada (1983), Lisboa: Horizonte; A revolta dos guardas chuvas (1988), São Paulo: Global; Os três cachimbos (1999), São Paulo: Global; O trem chegou atrasado (2004), São Paulo: Global.
[Ana Cristina Vasconcelos]
10/2011