Manuel da Fonseca
[Santiago do Cacém, 1911 - Lisboa, 1993]
Fez a instrução primária em Santiago, no meio de uma família oriunda de Castro Verde e do Cercal do Alentejo. Em Lisboa, frequentou o Colégio Vasco da Gama, o Liceu Camões, a Escola Lusitânia e, ainda, a Escola de Belas-Artes. Nas férias, regressava a Santiago (Cerromaior, nas suas obras), a casa dos avós, ou, posteriormente, de uma tia.
Exerceu actividades muito díspares, quer na área do comércio, quer na da indústria, tendo ainda trabalhado em jornais e revistas e numa agência de publicidade. «Em Cerromaior nasci. / Depois, quando as forças deram / para andar, desci ao largo. / Depois, tomei os caminhos / que havia e mais outros que / depois desses eu sabia.»
Se estivermos atentos aos seus livros, saberemos muito mais do A., pois a sua obra é fortemente autobiográfica, já que as personagens que recriou (delineadas por forças internas) e a realidade, nela descrita, estão intimamente ligadas a experiências vividas e a uma unidade psicológica extremamente coesa. «Uma vez lançado, a realidade e a invenção, mascaradas, jogam às escondidas comigo – nunca sei ao certo, em cada momento, qual delas preside ao que escrevo», disse em entrevista.
Respirando e vivendo as memórias do Alentejo, este é, na verdade, parte de um todo, e Santiago é o espaço do conhecimento e tempo da revelação, memórias indeléveis do seu primeiro mundo. A infância, a adolescência e o mítico Largo serão condicionantes da sua criatividade, observáveis em qualquer dos seus livros; e a ideia de se assumir cumulativamente como vagabundo é tão normal que a repete, tanto na sua poesia ou ficção como em prefácios ou entrevistas, deixando-nos assim uma imagem repassada por uma grande dor inicial: a de uma casa que verdadeiramente nunca teve. «Antigamente, o Largo era o centro do mundo. Hoje é apenas um cruzamento de estradas... Era através do Largo que o povo comunicava com o mundo... O Largo é o lugar da igualdade (mas, depois)... a vida mudou-se para o outro lado da vila.»
Antigamente: a infância, a alegria, a paixão, o equilíbrio e a comunhão vivida no Alentejo, tudo foi substituído pela visão do adulto, pela dor, cinzas e solidão encontradas na cidade. Os pontos de vista do escritor, que evoca o antes, donde o Largo e o Alentejo representarem as raízes embebidas no mítico e na idealização, e a presentificação dorida do agora, onde se observa a omnipresença dos olhos-ouvidos, «ouvidos para ouvir / e olhos para ver», indicar-nos-ão as duas perspectivas adoptadas pelo poeta e ficcionista, numa visão sempre terna e generosa, mas que reflectem bem a sua personalidade.
É pois natural que um tom confessional e coloquial, vivo, ressalte da sua escrita; que o narrador seja também personagem; e que as primeiras figuras, líricas e heróicas, caracterizadas por um excesso de vida e de paixão, se tenham transformado em figuras nostálgicas, exiladas, solitárias e inadaptadas à realidade em que vivem: «André Juliano, meu amigo de infância, como nós mudámos!» Um «ano de grande fome» foi o momento em que perdeu o paraíso e lhe definiu a passagem para outros espaços. É o «forno» que se desmorona, em Seara de Vento, é a mudança operada em Adriano, em Cerromaior.
A sensualidade, a expressão espontânea (porque mais interior e verdadeira), a organização plástica, a ductilidade semântica e a sua originalidade esbatem-se, nas últimas obras, apesar de nelas guardar o essencial, integrando e coordenando as multissignificações simbólicas em que o A. sempre foi mestre, porque a criação poética é isso mesmo, intimamente ligada a um falar interior, aos objectos que navegam no nosso corpo secreto. Por isso, «tudo o que há no novelista preexistiu, em embrião, no poeta», e será difícil estudar a sua ficção ou a sua poesia como produções autónomas.
«A observação do homem e dos seus problemas – esclarece em entrevista – tem de ser contada de um modo pessoalíssimo». Ora é este pressuposto que o impede de cair em «clichés» e em empolgamentos ideológicos. A perspectiva neo-realista, na sua obra, emerge cândida e com naturalidade pelo facto de descrever camponeses e patrões naqueles espaços alentejanos, associada à grande capacidade de ternura e compreensão dos seus semelhantes. Donde, ao escrever «Aquela raça de lavradores antigos acabou-se» não o faça contra o próprio lavrador, mas contra as adversidades e alterações que acabaram por deteriorar o ancestral equilíbrio vivido, no Largo, pelo homem alentejano, apaixonado e violento, porém compassivo e companheiro.
São essas transformações que o escritor acabou por retratar através dos olhos e da sensibilidade do menino ou rapaz que se defronta e abre aos problemas da sua região natal, repostas pelo adulto que as observa como factos que o ultrapassam mas que não explicará através da perspectiva da luta de classes. «Sou barco de vela e remo / sou vagabundo do mar... não tenho rota marcada.» Desta forma, foram os seus dramas e lutas interiores que lhe realizaram a obra, espelhando o conflito entre o mundo mítico, primeiro, e a realidade social posterior, injusta, sim, mas para a qual não propôs qualquer solução, já que foi céptico quanto ao advento de um mundo melhor. Trata-se, na verdade, de uma ideologia muito pessoal, que olha o passado afectivamente, como se o preferisse, o que não impede que a sua obra se inscreva no espírito e movimento neo-realista, ainda que de forma mais universal, ao colocar o indivíduo num centro e num plano diferentes daqueles para que aponta a realização colectiva.
in Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. IV, Lisboa, 1997